excertos de leituras que se aproximam:
“Antes que mergulhem os pássaros, novo rumor se inicia, este em Cecília: soalhas de pandeiros. Respondem logo ao rumor, à direita, com um pouco mais de intensidade, outros tantos pandeiros, tangidos por meninas entre dez e treze anos. Eis-nos escoltados pelos dois cordões do pastoril, sete figuras de um lado, com longas saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis, algumas desbotadas. Entre os dois cordões e de tal modo que parte do seu corpo trespassa o de Cecília, vai a Diana, vestida de azul e vermelho, sinal de que pertence às duas alas. No pandeiro redondo, maoir que os das pastoras e que ela faz soar com os braços levantados, também esvoaçam fitas vermelhas e azuis. Das mesmas cores é o grande laço que prende seus cabelos crespos. As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira, andando as da segunda, trançam-se. Nem todas as meninas trazem pandeiros. Duas conduzem uma cesta com jambos, laranjas e mangas-rosas; duas sobraçam dálias, lírios e açucenas. A Diana, cessando de tocar, ergue ainda mais os braços, faz-se silêncio e todos nós paramos. Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes. As pastoras, de repente, iniciam uma loa, marcando o compasso da música com os pés e os pandeiros, estes enfeitados de fitas como a grande roda desaparecida:
Vinde, vinde, moços e velhos,
Vinde todos apreciar,
Como isto é bom, como isto é belo,
Como isto é bom e bom demais.”
“Outro fator de encantamento poético, no filme, são as maravilhosas roupagens, coroas e máscaras do teatro nordestino, que ali aparecem de passagem. O povo do Nordeste sabe, com uma arte estranha e poderosa, criar a beleza a partir da miséria, e consegue manter sua grandeza no meio da maior degradação. As moças vestem-se de dianas, princesas, damas e rainhas; os homens, de reis mouros, cruzados, príncipes e cavaleiros, com máscaras de couro e coroas de lata, espadas de madeira e chapéus de formas estranhas, cravejadas de pedrarias, que parecem templos asiáticos. São os pobres e belos sonhos do povo que se veste assim para sonhar com o poder e a glória, cujas portas, na vida, lhe são trancadas.”
“A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. [...]
Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós - que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto - que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do technicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.
Glauber Rocha, “Eztetyka da Fome” (1965)
Fortaleza, 26.11.9.
Rodolfo Silva